domingo, 29 de março de 2020

Cânticos

I

O dia do Senhor amanheceu em cinza claro
Pelas esquinas os rumores antecipam o estopim...
Eles vão andando em bandos, os fanáticos do fim,
Tão seguros e tranquilos, mesmo sem nenhum amparo.

Lá de longe, em outro bairro, eu assisto o movimento
Desses carros funerários que carregam os defuntos
Mortos de vala comum, não se fala outros assuntos,
Todos assistindo a vida se encerrar em tom cinzento.

Para além do muro e rua, existe a praça de defronte
Proclamando disparates, os fanáticos comungam,
Os que passam por aqui, por trás das máscaras, resmungam
Todos eles, tristes corpos, irão aumentar o monte...

A revolução aguarda, silenciosa, nos porões
Eu espero a minha ordem e o sinal de meu Senhor
Oro pra que os anjos a guardem, imaculada, meu amor,
Pois logo estarei pela rua, entre os rifles e canhões.

II

O cavaleiro branco já nos reina absoluto
Nos governa, bem do alto, sob a mira de sua seta
Faz deitar ao chão a chuva, sua purificação direta,
Vendo a angústia dos doentes, permanece resoluto.

Vêm, trajando preto, os antigos latifundiários
Que se negam a dividir os frutos de tua bonança
Assistem o desespero, enquanto pesam na balança
O quanto irão negar a teus famintos funcionários

Rubro, ao brilho de tua espada, chega o novo cavaleiro
Para incentivar o atrito que nos ceifará da terra
Especializado em tudo que é pequeno e causa guerra
E cumpre, lealmente, cada horror desse roteiro

Por fim chega a criatura, com os seus olhos dourados
Trazendo nas mãos a mortalha e no riso o próprio inferno
Já assistiu a tanta coisa, o cavaleiro sempiterno,
Mas ainda não havia visto o fim de tantos condenados

III

Sob a luz do sol, não há terror que tome conta
Seguimos adiante, enfeitiçados na ilusão,
A morte tão distante não nos toca na razão
E a pilha de cadáveres no jornal não amedronta.

Os demônios se esgueiram nas sombras e nos cantos
Sussurrando as tentações que só a rua nos concede,
Mal dizendo a opinião pública, que do lucro nos impede:
"Do que nos serve ter dinheiro e não viver os teus encantos?

Iremos ocupar as praças, avenidas, prefeituras
A câmara dos deputados, o senado, os sindicatos,
As escolas, faculdades, os liceus e os internatos
E todo espaço em que ressoam os disparates e as loucuras"

Mas sob a luz do sol, não há terror na realidade
Por detrás do céu azul, há um paraíso inalcançável
Só nos resta construir o nosso Éden comerciável
E viver, aqui nos trópicos, o sonho que é verdade

IV

Vês, sou apenas mais um que sofre na tribulação
Como se assistisse a hera tomar conta do jardim
E somente esperasse pela surpresa no fim
Me escondendo, tão covarde, em minha própria criação

Logo mais virá a noite, a paranoia, a intensidade
E as sombras que se agrupam nos telhados vizinhos
Horrores de outro mundo construindo aqui seus ninhos,
Que aguardam o pesadelo para destilar maldade

Eu te busco, minha amada, te insiro na minha rima
A ti crio um mundo inteiro, em que tudo está melhor
E nós dois nos deitaremos, sem ninguém ao redor
E concretizaremos esse amor que é nossa sina

Estou febril, entristecido, talvez não me reste tanto
Não sei se a antologia de meus versos sobrevive
Ou se, dessas batalhas, qualquer êxito obtive
Mas o meu coração se rende, para sempre, ao teu encanto



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