domingo, 29 de março de 2020

Cânticos

I

O dia do Senhor amanheceu em cinza claro
Pelas esquinas os rumores antecipam o estopim...
Eles vão andando em bandos, os fanáticos do fim,
Tão seguros e tranquilos, mesmo sem nenhum amparo.

Lá de longe, em outro bairro, eu assisto o movimento
Desses carros funerários que carregam os defuntos
Mortos de vala comum, não se fala outros assuntos,
Todos assistindo a vida se encerrar em tom cinzento.

Para além do muro e rua, existe a praça de defronte
Proclamando disparates, os fanáticos comungam,
Os que passam por aqui, por trás das máscaras, resmungam
Todos eles, tristes corpos, irão aumentar o monte...

A revolução aguarda, silenciosa, nos porões
Eu espero a minha ordem e o sinal de meu Senhor
Oro pra que os anjos a guardem, imaculada, meu amor,
Pois logo estarei pela rua, entre os rifles e canhões.

II

O cavaleiro branco já nos reina absoluto
Nos governa, bem do alto, sob a mira de sua seta
Faz deitar ao chão a chuva, sua purificação direta,
Vendo a angústia dos doentes, permanece resoluto.

Vêm, trajando preto, os antigos latifundiários
Que se negam a dividir os frutos de tua bonança
Assistem o desespero, enquanto pesam na balança
O quanto irão negar a teus famintos funcionários

Rubro, ao brilho de tua espada, chega o novo cavaleiro
Para incentivar o atrito que nos ceifará da terra
Especializado em tudo que é pequeno e causa guerra
E cumpre, lealmente, cada horror desse roteiro

Por fim chega a criatura, com os seus olhos dourados
Trazendo nas mãos a mortalha e no riso o próprio inferno
Já assistiu a tanta coisa, o cavaleiro sempiterno,
Mas ainda não havia visto o fim de tantos condenados

III

Sob a luz do sol, não há terror que tome conta
Seguimos adiante, enfeitiçados na ilusão,
A morte tão distante não nos toca na razão
E a pilha de cadáveres no jornal não amedronta.

Os demônios se esgueiram nas sombras e nos cantos
Sussurrando as tentações que só a rua nos concede,
Mal dizendo a opinião pública, que do lucro nos impede:
"Do que nos serve ter dinheiro e não viver os teus encantos?

Iremos ocupar as praças, avenidas, prefeituras
A câmara dos deputados, o senado, os sindicatos,
As escolas, faculdades, os liceus e os internatos
E todo espaço em que ressoam os disparates e as loucuras"

Mas sob a luz do sol, não há terror na realidade
Por detrás do céu azul, há um paraíso inalcançável
Só nos resta construir o nosso Éden comerciável
E viver, aqui nos trópicos, o sonho que é verdade

IV

Vês, sou apenas mais um que sofre na tribulação
Como se assistisse a hera tomar conta do jardim
E somente esperasse pela surpresa no fim
Me escondendo, tão covarde, em minha própria criação

Logo mais virá a noite, a paranoia, a intensidade
E as sombras que se agrupam nos telhados vizinhos
Horrores de outro mundo construindo aqui seus ninhos,
Que aguardam o pesadelo para destilar maldade

Eu te busco, minha amada, te insiro na minha rima
A ti crio um mundo inteiro, em que tudo está melhor
E nós dois nos deitaremos, sem ninguém ao redor
E concretizaremos esse amor que é nossa sina

Estou febril, entristecido, talvez não me reste tanto
Não sei se a antologia de meus versos sobrevive
Ou se, dessas batalhas, qualquer êxito obtive
Mas o meu coração se rende, para sempre, ao teu encanto



sábado, 28 de março de 2020

Monelle #4

Monelle,

Por aqui as janelas já não se abrem, e por detrás delas um mundo inteiro morre a cada hora. Do alto das casas vizinhas tenho percebido o movimento constante dos transportes funerários, mas tudo é só o silêncio das máscaras. Já não sei o que pensar... Alguns ciclos se fecham e talvez um dos próximos seja o nosso. Restam poucos que sujeitam-se à sorte, esse ferozes fanáticos do fim, erguendo as vozes nas filas de farmácia e o estandarte da contra-revolução. Eu peço apenas pra que o Senhor nos ilumine e guarde, pois a piada só me deixou um gosto amargo.

As manhãs já saem do horizonte cinzas e só tuas cores fazem o dia valer a pena. Me dizes cego, mas não vês que enxergo além? Mesmo imerso na mesmice, eu te distinguo dos demais, Monelle, pois até os seus perigos me seduzem. Quisera ter algum vislumbre do futuro, qualquer coisa que nos garantisse o acerto, mas estamos presos por debaixo do escafandro e eu só sinto a falta de ar... Acordo, febril, mais uma vez diante da mesa e penso em ti. Acendo o cigarro sigo pensando em como seria bom se acordássemos de um sonho coletivo e nos encontrássemos novamente, apenas pelo instinto de que o amor está em ti. Mas ainda acordaremos separados, em incontáveis manhãs e tardes, tateando o vazio e suspirando.

Mas haverá o nosso amor, como já existe, como já nasceu e vive. Vive em mim, poeta de olhos calmos, e em ti, minha tempestuosa artista. Não se assuste com as perspectivas e as matérias de jornais, aceita em teu coração o expurgo que se aproxima, o Senhor lhe guarda, lealmente. Usas de teus olhos lúcidos e de tuas mãos habilidosas, pinta o nosso amor de fim de mundo. Tenho vivido apenas pra ser teu amante, seguirei sendo pelo tempo que me concederes ou até que o golpe do carrasco venha.

Entretanto, preciso pedir-lhe que redobre seus cuidados, meu amor, pois coisas terríveis nos espreitam lá fora e eu jamais prosseguiria sem você.. Ouvi pelos mercados que o pior está por vir.

Orarei por nós esta noite,
Penaforte

sexta-feira, 27 de março de 2020

Ernesto #4

Seriam todos os poetas cegos? Pois parece a mim Ernesto, que você nada vê, que és constantemente um flâneur a ouvir a arrebentação e sentir o cheiro do manjericão que exala no orvalho, vives a pensar palavras sem nunca as contemplar, deixando ressoar apenas sua musicalidade no fundo de teu crânio. Queria eu com uma lâmina cortar-lhe a carne em cem aberturas eternamente doloridas chamadas olhos, essas aberturas eternamente cruéis e salgadas, que não perdoam e não permitem ilusão, mundos românticos, em que eu e você iremos dividir um quarto, partilhar o mesmo ar, ar que nos falta sem a presença um do outro, seremos eternamente suspirantes, incompletos, aterrorizados pela ausência, nossa pele continuará virgem em sua maldição, nunca seremos sombra porque nunca haverá sol para raiar a luz que iluminará o nosso amor, amor natimorto.
Monelle

Soneto Inflamável

Versos tristes, beijos quentes e a posse de meu coração
São somente estas três coisas que, hoje, posso oferecer.
Vivo pra seguir o ofício de nutrir a sensação
De que amo tudo aquilo que acabo de conhecer.

Tenho uma cama curta, travesseiros, cobertores 
E uma porção de livros velhos, que não contam nosso drama
Algo de poesia e canto pra acender os teus ardores,
De um desejo tão intenso, que ao menor toque inflama.

Sou por tantas vezes parvo, ignorante e desatento,
Insensato, indecoroso e desprovido de etiqueta,
E olha que nem comecei a falar sobre essa loucura...
Busco, insone, na angústia um novo contentamento:
Saber que, mesmo louco, o teu coração me aceita
E ver a tempestade lavar toda esta amargura.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Só conheço o dissabor e a intemperança, como se o crepúsculo durasse para sempre

Só conheço o dissabor e a intemperança, como se o crepúsculo durasse para sempre. Nesta fria madrugada, tuas palavras são como todas as estrelas, brilham, mesmo que distantes, guiando a nave que carrega meu destino, como se tudo que eu conhecesse fosse o teu norte. Mas o Senhor nos concedeu a quarta-feira, como outra chance de viver um amor - esse amor de serafins - gravado em fogo da tua pele, fruto de ardores e desejos.

Somos como duas sombras, vivendo apenas quando nossos corpos se encontram sob o sol, espectros tristes das pessoas que somos. Mas ainda resta a cria amada: o doce amor de uma semana, que parece não ser parte desse mundo. Me sento à calçada, o que hei de fazer? Sou poeta apenas por ofício, mas, aos olhos de nosso Senhor, sou só mais um amante, seguindo só pela estrada da saudade, essa estrada que, não obstante as direções que escolhamos, só me leva pra mais longe de ti, Monelle. Não se derrames em vão, sou tudo o que quiser que seja, mas não posso ser o mar, que sorveria as tuas lágrimas de sal e solidão.

Não ceda à angústia, não entregue a tua doçura por desalento e desespero. Somos dois desajustados que aos poucos têm se ajustado melhor, dois estrangeiros na terra dos simplórios, ainda nos resta o objetivo derradeiro: ser somente amor. Ofélia nenhuma saberias dizer-lhe como é ser objeto de tamanho sentimento. Se guarde na torre, o mundo lá fora jamais te mereceu.

Atravessando a cerração e violência, logo nos encontraremos.

Ernesto Penaforte


Ernesto #3

Ernesto,
Mata-me de desejo e desprezo, faz nascer rios em meu corpo de mulher, hora gélido hora febril, me inquieto com sua presença ausente, desfaleço em minha solidão. Às tempestades das quais tanto fala caem também de meus olhos, lágrimas pesadas, ardentes, sufocantes, e no meio à asfixia, sinto suas mãos, em meu pescoço e em minha vulva, desaguando em mares mornos, preenchendo cavidades, desatando gritos, tremo, esperneio, te odeio e despeja mais calor em mim. Acordo nadando em minha própria imundície, arrebatada por seu encanto, enfurecida por seu abandono. Queria me dissolver nas águas, ver meu corpo reviver em folhas, pétalas e no reflexo multicolorido da luz, mas me nego a ser sua Ofélia e sigo assombrando minha torre, com as mãos atadas e o pensamento a sua procura.
Monelle.

terça-feira, 24 de março de 2020

Anjo Caído

O Senhor doirou os céus pros olhos teus,
Fez nascer sol onde só havia angústia,
Torço somente pra que a dor jamais assuste-a,
Tu és, Monelle, essência destes sonhos meus.

Vivemos tensos pelo alarde a rua afora,
Assistindo ao desespero e o eclipse.
Sigo orando pra que o Senhor certifique-se
E faça desse tempo a nossa aurora

São dias frios, solitários e distantes,
Pra estas mãos, que só desejam teu calor,
Mas pendem fracas desse corpo. Anjo caído...
A redenção não está nas luzes mais brilhantes,
Ela somente vem a mim por teu amor,
E cura todo horror que o mundo tem sofrido.

domingo, 22 de março de 2020

Alguma Solução Profética

Às cinco horas eu acordo, tateando à tua procura
E me perco no silêncio desta insone madrugada
Me proponho tanta coisa, me afogo na ternura
E na imensa sintonia da paixão tão prematura
Como se minha própria alma estivesse embriagada 

Somos dois desajustados, loucamente procurando
Por motivos adequados pra justificar a entrega
E de tanto procurar, acabamos encontrando 
Esse súbito romance vai aos poucos se ajustando,
E, de longe, sinto tudo aquilo que você não nega

Mas com tantos artifícios pra render esta poética
Sei que acabo lhe causando, fatalmente, confusão
Entendo teus anseios, tua postura, que é tão cética,
E não tento lhe vender alguma solução profética
Você diz que não entende, mas até me dá razão

E seguimos construindo esta doce fantasia
Aos olhos de nosso Senhor, que nos deu a permissão
De criar um novo amor, colocado em primazia
Mesmo que o resultado só nos venha em outro dia
Já te guardo, bem segura, dentro de meu coração

Se tu sentes

Entre os teus olhares rápidos, encontrei estas certezas:
Eu me apresso a te buscar, pois no fundo eu encontrei
Todas as razões pelas quais me apaixonei
E escrevo todas elas, disfarçando em sutilezas

Temos muito pouco tempo, mas pra mim há de bastar
Não se deixe assustar pelas doces confissões
Apenas me permita que descreva as sensações
Que me ocorrem quando tu pousas em mim o teu olhar

Se tu sentes - sei que sentes - me preserva em tua vida
E me faz ser tudo aquilo que desejas para si
Nada mais, no mundo todo, me faria mais feliz
Se tu sentes - sei que sentes - sabes que não há saída
Tal qual flor da primavera, em teu peito floresci
E por fim, a ti confesso, isso é o que eu sempre quis

Monelle #3

Monelle,

O próprio Hades haveria de me conceder passagem, caso o beijo frio da morte lhe alcançasse antes do meu, mas estás segura, protegida pelos anjos do Senhor, que intercede gentilmente em minhas várias orações. Se tu és minha Eurídice, saibas que este Orfeu não olha para trás, mirando somente o que está disposto a nossa frente e, assim, planejando cuidadoso um futuro nosso. Nesses versos apolíneos que te escrevo, a carruagem ensolarada é, tão somente, a sua luz. Não se aflijas nem mais um segundo, pois teço a ti os mais solenes juramentos. 

Que venha a guerra, a peste e a morte. Se há espaço no teu seio, edificarei aí nosso recanto com as mais belas palavras que encontrar no vasto léxico. Nossos muros serão altos e robustos, pra impedir que a vida avance para dentro de nossa paz. As janelas serão claras e alinhadas. Com varandas altas, colunas brancas e um aconchegante jardim, de onde colherei as flores que enfeitarão a poesia de todos os dias que passarmos juntos. É belo o desatino... Causa dor imaginar.

Hoje veio a nova tempestade. Sinto que estás se distanciando cada vez mais de mim, mas deve ser somente o tédio, que mina lentamente os ânimos desses corações apaixonados. Não desista do romance, o Senhor nos reserva o encontro em sonho quente. O outono chegou, Monelle, deixe que as folhas caiam e o vento passe taciturno, mas não deixe ressecar o que há de amor em ti.

Aguardo-lhe na morada de Morfeu,
E.P.

Ernesto #2

Ernesto,
Você se veste de Orfeu em seus sonhos, indo procurar no inferno um alguém para chamar de sua doce donzela. Não vou negar que suas palavras e sua melodia me levam a arrepios, lembrança de que ainda vivo, respiro e sinto. Mas mesmo viva e sentindo o sangue púrpura jorrando em minhas entranhas, não posso afirmar que conclua sua aventura satisfeito, pois temo que após enfrentar a angústia, moléstia e o tempo, poderá descepionar-se ao encontrar em meu seio apenas invólucro do que já foi e não mais é, e não cantará mais. Não sei se olhará ou não para trás, mas pelo menos fui sincera escrevendo para ti de minha prisão rodeada de demônios. 

Monelle

sábado, 21 de março de 2020

Poesia dos Excessos

Eu, a beira do colapso, te busco novamente
E me entrego, sem pudor, torpor de meus sentidos
Volto então a desenhar caminhos divididos
Pra acalmar a tempestade que desaba em minha mente

Eu darei início a busca do fim que é só o começo
Nunca me ensinaram a negar meu desejo
Sei que ao fechar os olhos, será você que eu vejo
E acordo de manhã com as dores que mereço

Excessivamente lúcido, no fundo tudo é só rotina
Já não há saída dessa sina, já não há saída dessa sina
Excessivamente lúcido, no fundo tudo é só rotina
Já não há saída dessa sina, já não há saída dessa sina 

Mas afinal, agora é só disritmia, afinal agora tudo
Que eu queria era ter mais, quem sabe um pouco basta
Afinal, eu sigo noite a dentro a linha vasta
E vejo o que não está aqui, sentindo falta, falta…

Eu, a beira do colapso, te busco novamente
E entrego o que pedir de mim, sempre tão sorridente
Volto a desdenhar quase completamente
Eu já não quero mais, só quero diferente

Excessivamente lúcido, no fundo tudo é só rotina
Já não há saída dessa sina, já não há saída dessa sina
Excessivamente lúcido, no fundo tudo é só rotina
Já não há saída dessa sina, já não há saída dessa sina

Emboscada

Não há em mim esse bom senso, que todos dizem ter,
Me nego a ter limites, pois me sobra tanto instinto.
Tenho este tolo coração, tão incerto do que sinto,
Mas que bate em sintonia com o que tenho pra dizer

Ansioso e exagerado, aceito estes adjetivos,
Mas não sou dissimulado e nem pretendo a ilusão.
Sei que escrevo poemas, mas não vivo a ficção,
E nem tento controlar os meus impulsos criativos.

Apenas tenho a garantia de que os versos são honestos.
Canto, sem nenhum remorso, todo esse confessionismo
Planejando, unicamente, conquistar tua atenção.
Como o vilão que, displicente, conta seus planos funestos
E termina derrotado em algum ato de heroísmo,
Eu afirmo a ti, Monelle: roubarei teu coração.

Insinuações

Todas as madrugadas já são nossas, não há como negar
Na alvorada me despeço do que penso que tu és
Como se o sol quisesse me impedir de te abraçar
E, zombando, insinuasse meu irônico revés

Como posso, tão abrupto, te entregar meu coração?
E, ignorando o mundo, lhe escrever um livro inteiro
Sei somente que o que sinto é, na essência, verdadeiro
E, diante do perigo, me desfaço da razão

Não me importa a ansiedade, se tu vens eu me enfeito
Sou o servo mais leal do que os teus lábios comandam
E aceito, de bom grado, ser o amante que tu queres
Não importa, pois apenas faço o que me manda o peito
Estar junto de ti, alma e coração demandam,
Encontrar o meu lugar em meio aos versos que me escreves

sexta-feira, 20 de março de 2020

A ânsia, o sonho e a insônia de um rapaz chamado Ernesto

Aguardo o enlace, o verdadeiro enlace
Aquele tal qual nó, mas nunca cego
Dest'ânsia que eu, sôfrego, não nego
Quisera apenas que a tua mão me acalmasse 

Mas tu és sonho, ou no mínimo miragem
És o ideal tão puro e romantizado
A musa deste cavaleiro desmontado
Para te escrever ainda falta-me linguagem

Já não durmo, pois falta aqui teu corpo quente
O terço gasto pelas várias orações
Pra que o Senhor aproxime os corações
Proporcionando um amanhã tão diferente

Aquele que combate abismos incontáveis
Ernesto Penaforte és teu criado
Diante de teus pés, ajoelhado
Pronto para os nossos dias memoráveis

Monelle #2

Doce Monelle,

Quem dera ser o pássaro que me descreves em tua mensagem. Quem dera ter em mim estas asas e estas cores que, por doce desatino, tuas mãos pintam em mim. Se pudesse romper as barreiras destes muros, estaria agora em tua janela, cantando-lhe os versos que escrevo ininterruptamente sobre estes teus olhos tão profundos, tão intensos, a ler em minhas palavras este amor que floresce, mesmo sem o sol. Se o Senhor me desse asas, te levaria pra bem longe, onde nem mesmo a bela Vênus nos perscrutaria, e assim seríamos um só. Mas sigo aqui, engaiolado no tormento de tua ausência, desejando o teu calor e tua luz, que brilha forte, mesmo na obscuridade de tua essência.

São tristes as conjecturas. O começo de nosso caso é frio e mórbido, como se fosse esculpido em gelo, por estes teus finos dedos. Como se fosse pintado em cores frias pelos teus negros olhos. Como se fosse, realmente, o fruto dos males de Pandora. Mas nada disso diz sobre o nosso fim, que se estende pela vida afora. A obra do demiurgo tem nossos nomes no projeto, sei que somos parte de um destino, muito maior do que o perjúrio, muito maior do que a distância, muito maior do que o amor em si, mas nunca, de forma alguma, maior do que este sentimento que me toma o peito e as vias aéreas - como o vírus que se propaga lá fora - e morre, serenamente, em papel branco.

Em ti encontro forças para atravessar estas tristezas, tu és o lume das minhas madrugadas. A própria lua sente inveja, mas o que posso fazer? Estou tomado, cada vez mais, por tua presença que, ironicamente, não se faz presente em carne, mas que, como o próprio mármore, é matéria prima desta obra tão bela que é o nosso desejo mútuo. Não se afastes do objetivo primário, meus beijos estão guardados para ti.

De seu bardo,
Penaforte apaixonado

Sinto mesmo à distância seus olhos sobre meus passos

Caro Ernesto,
Sinto mesmo à distância seus olhos sobre meus passos e me pergunto o que posso ter feito eu para merecer tão súbito afeto. Sei que temos ambos em coração e alma a fúria de tempestades, calores de magma reluzente e paixão de mar revolto. Mas lendo suas cartas vejo você tão distante, não só em plano físico. Vou ao espelho tentar me ver em suas palavras mas tudo o que há é um corpo frágil, faço minha pele em caixa de Pandora, sempre tremendo de terror de liberar todos seus pecados ao mundo, vejo pequeno animal noturno, com o olhar amedrontado, nômade, fugidia, volátil, porém presa. Enquanto em ti sinto espírito de pássaro, posso até imaginar suas asas, batendo violentamente no horizonte, brilhando em penas multicoloridas, livre, tão livre e disposto a pousar em madrugada para cantar seu amor noturno a tão arisca felina. Me falta entendimento mas não me falta afeto, me amedronto na vênus que esculpe com teus olhos, mas confio que na carne encontrará calor distinto ao mármore, e que você poderá ver beleza, mesmo em meio ao sangue as veias e as vísceras. 

Monelle

20 de março

Desventurados

Não há descanso para os desventurados
Nem para os trepidantes, com seus corações na mão
Não há alívio para os que desejam de antemão
Os amores que, ao futuro, são jurados.

Mas há teus olhos, que a mim tem de bastar
Há teus olhos, demasiadamente escuros
Estes olhos que preveem nossos futuros
Que me fitam, sem nada revelar.

Há tanta sombra disposta nessa estrada,
Um porção de outros caminhos pra seguir
E apenas um, dentre eles todos, tem você.
Eu nunca soube, mas a história reservada
Diz sobre coisas que eu sempre quis sentir
Mas ainda não tinha, realmente, a quem dizer.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Após a forte tempestade de sua chegada em minha vida,

Após a forte tempestade de sua chegada em minha vida, eu me recolhi a estas palavras, tão vazias diante da complexidade do que sinto, assombrado, sem qualquer pudor, pelo fantasma de sua ausência nestes dias tão sombrios. Monelle, eu sinto tua falta, sem nem mesmo ter conhecido a tua companhia, e isso tudo desaba em mim muito mais forte do que qualquer tempestade. Mas as ruas estão desertas agora, é certo que a precipitação corrói antecipadamente os ânimos e eu me presto, contando com o benefício da dúvida que paira entre nós, a ser teu bardo nestas madrugadas que se estendem.

Lavam-se corações na rua, esta noite de março é especial aos olhos de nosso senhor, minha doce senhorita. Amanhã seremos outros, presos nesse pérfido enredo que teima sempre em separar os lábios teus de meu alcance, seja pela crise ou a doença, ou talvez a híbris que nos condena à morte sem nunca ter conhecido o calor da poética da carne. Aguardo o encontro, talvez os astros intercedam.

Delirante, cavaleiro ao teu encontro é como sente-se este intrépido quixote, que se rende à força do arquétipo, da presença artística de tuas palavras, eu rendo a ti mais outra nota deste amor platônico, que é a triste quinta-feira desta era turbulenta.

Orarei por nós esta noite,
E. P.

19 de marco de 2020

Ernesto #1

Ernesto,

É só eu pensar em te escrever que as trovoadas anunciam a água a cair, é com o cheiro de chuva e tabaco que eu registro aqui pra você meus pensamentos, a sentir cheiro que eu imagino que seja seu mas que não posso por vivência afirmar. E é assim com quase tudo sobre você, sua imagem é palavra e delírio, translúcida, etérea, é muito mais de mim do que de fato de você e se confunde entre a sua explícita doçura e minha amargura antecipada. Me condeno por tanto delirar mas já estou cativa, e tudo o que você me dá é matéria de sonho, que me faz ir longe em ruas que não andei, de olhos fechados a procurar e atormentada por uma sensação firme molhada e dura de morder a fruta que não colhi, e sem colocar os pés na grama sentir o sol e a brisa que imagino ser o seu abraço. Você fala de tempo, mas dele já fui malabarista, confesso que sorrio ao desalento da sua pressa, sei que quando eu fechar os olhos lá você vai estar, sou cruel em rir de seu estado, mas confesso que pra mim o rosto desse livro que conta a nossa história, é tão interessante quanto o início, meio e fim.


Monelle

Monelle #1

19 de março de 2020

Monelle,

A ti escrevo, por já não mais suportar a distância, que é só o que conhecemos. Sinceros são meus votos de que este isolamento seja parte do processo que nos une, enquanto gasto meu tempo aprofundando a riqueza de detalhes desta ilusão, que é teu toque e o teu beijo, a promessa de teus braços. Lassos, estes olhos que te velam, em súbita necessidade de lhe tomar a mão e te guiar por um caminho nosso. A quarentena segue, mas o desejo a faz presente.

O passar das horas está sob teu domínio. Os ponteiros, distraídos, pararam de correr, aguardam tua ordem para que a vida prossiga. Alquebrantado, percebo em mim tanta vileza, mas existe a tua serenidade, mesmo quando o castanho dos teus olhos carrega esta sinceridade amarga, que tu teimas em traduzir como expressão de tua alma, mas eu sei bem que a tua alma é repleta de outras coisas, minha intangível companheira.

Quebro este silêncio e perturbo a tua paz com meus lamentos, mas tu és a que me ouve, sem necessariamente escutar o que as frequências cantam, mas percebendo a sutileza mais perene em minha lírica. Nada mais importa no momento, além da carta que lhe escrevo e teus olhos, doces olhos, que apenas assistem o espectro - algo que nem sou - mas que me querem perfilar, que me querem dissuadir e o fazem, mesmo essencialmente longe, mesmo que entre nós exista todo o mar de gente igual, que desprezamos, tens em mim o alento que quiseres e toda sorte de amor vindouro, despontando ingenuamente destas camadas de mistério.

Combato todo tipo de abismo, conversando dentro de mim mesmo com a razão que de ti emana. Busco a tua silhueta pela rua, mas não é possível distinguir o que é o sonho e o encontro, apenas guardo-me para o momento em que estaremos juntos, Monelle.

Já pertenço, sei que sim, já me quedo à tua chamada, mesmo no triste exílio de minha casa. Imagino-te nestes lençóis frios, aquecendo, irreparavelmente, o que está congelado em mim. Subo ao alto das casas vizinhas e lhe converto em norte, para as noites de vigília. Residirá em ti o objetivo derradeiro dos próximos momentos. Que se danem os outros, apenas quero o beijo teu.

Distante, mas presente em pensamento,
Ernesto Penaforte

Terceira Parte

Esta é a terceira parte das insensatas confissões que lhe escrevo,
Que se apresenta, mais por charme que pela estática do choque,
Nos momentos que nos falta pele, mas sobra aqui tanto desejo,
Resta saber se a mística persiste ao toque.

Emoldurado, pelas telas que nos unem, assisto estas reviravoltas.
Suspiro a sós, sem ter nenhum conforto na distância
Mas já não questiono, em nenhum momento, tua importância
E busco mais de ti, em cada nota que me soltas

Vou falhar diversas vezes no processo, isto é normal,
Mas, vacilante, ainda tento lhe gravar em outros versos
Sem nem saber das realidades que trouxeram-te até a mim.
Sei que é demais, mas é só um pouco do que me é tão natural,
Lido tão bem com sentimentos, que por vezes tão dispersos,
Sempre são bonitos, se não são o nosso fim

Fina Camada de Mistério

Sob uma fina camada de mistério, proponho
Que a gente se revele, sem nunca ser simplista
E diante do caos e a cerração, algo persista
Seja como encontro ou como sonho

Escrevo, sabendo que abuso de rimas vencidas.
Anunciando o ensejo, pois tens minha atenção,
Enquanto aposto em tuas certezas divididas,
Que nada dizem além de minha própria confusão.

É madrugada, curiosamente é teu momento,
E eu que compartilho desta insônia intimista
Tento disfarçar o encantamento, sendo artista,
Entretanto, jamais pretenderia o meu intento.

Sei que não será agora, mas me guarda como for,
Que tudo é muito, aos olhos de quem desconfia.
Já é tão difícil imaginar qual é o sabor
Do nosso enlace, que há pouco se anuncia






quarta-feira, 18 de março de 2020

Ensaio Sobre a Tempestade

As tempestades tem propósitos distintos da razão.
Nunca conheci quem me explicasse a natureza vil 
e o entardecer severo dos dias de solidão. 
Não, são só mãos que apontam, vagas, para um erro mais sutil,
mas nunca compartilham, de fato, essa iluminação, 
essa certeza de que tudo se lava e tudo se seca
e nada se perde em mim.

Tempestuosos são meus dias, mesmo quando o sol bate à porta.
Mas não me batem à porta os clarividentes e os sobrenaturais,
não, estes se escondem, e apenas alguns contém a fúria em sua sabedoria.

Eu? Eu que tantas vezes me confundo em natureza morta,
e em outras inúmeras vezes pretendo ser parte dela, só pra ver
se passa... Se assim esquecem das cobranças, se me deixam 
ser em paz. 

Mas vejo tudo o que eu queria escorrendo na janela
e os dias ficam frios, mesmo quando o sol é quente.

Atravessar a tempestade e a fúria é natural.
Assim como os bancos de qualquer praça em que me sento para pensar nestas palavras,
assim como as janelas, que são porta de entrada pra tudo o que é externo,
assim como o que é externo e vive, independente de mim,
como o que nem vive
e eu nem sei nomear.

São só rabiscos rápidos no papel molhado
que vão se perder, como as nuvens que dissipam no fim,
mas não dissipam a angústia de não saber
do que são feitas a tempestade e a fúria dentro de mim.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Crias do Silêncio

Como a cor dos olhos teus, meus dias tem brilhado.
Devo ter muito cuidado pra não me precipitar...
Temos histórias terríveis escondidas no passado
E essa dor de cada dia, que teima em continuar.

Somos dois abandonados que Deus quis aproximar,
Duas crias do silêncio, que sabem como é estar sozinho.
Acho graça do destino, que te pôs no meu caminho
E inicio outro processo de me permitir gostar

Te escrevo, pois não posso permitir que a sensação
De não ter criado em ti algum alento, prevaleça.
Silencio cada voz que rege o meu coração
E ergo a ti a minha mão, meu ombro e tudo que interessa

Não se afunda mais sozinha, conta com minha presença.
Nem sei se te faz diferença, mas me presto a te ajudar
Sei que ainda é cedo, mas não paro de pensar
Que pra te ver sorrir, toda espera compensa