sábado, 28 de março de 2020

Monelle #4

Monelle,

Por aqui as janelas já não se abrem, e por detrás delas um mundo inteiro morre a cada hora. Do alto das casas vizinhas tenho percebido o movimento constante dos transportes funerários, mas tudo é só o silêncio das máscaras. Já não sei o que pensar... Alguns ciclos se fecham e talvez um dos próximos seja o nosso. Restam poucos que sujeitam-se à sorte, esse ferozes fanáticos do fim, erguendo as vozes nas filas de farmácia e o estandarte da contra-revolução. Eu peço apenas pra que o Senhor nos ilumine e guarde, pois a piada só me deixou um gosto amargo.

As manhãs já saem do horizonte cinzas e só tuas cores fazem o dia valer a pena. Me dizes cego, mas não vês que enxergo além? Mesmo imerso na mesmice, eu te distinguo dos demais, Monelle, pois até os seus perigos me seduzem. Quisera ter algum vislumbre do futuro, qualquer coisa que nos garantisse o acerto, mas estamos presos por debaixo do escafandro e eu só sinto a falta de ar... Acordo, febril, mais uma vez diante da mesa e penso em ti. Acendo o cigarro sigo pensando em como seria bom se acordássemos de um sonho coletivo e nos encontrássemos novamente, apenas pelo instinto de que o amor está em ti. Mas ainda acordaremos separados, em incontáveis manhãs e tardes, tateando o vazio e suspirando.

Mas haverá o nosso amor, como já existe, como já nasceu e vive. Vive em mim, poeta de olhos calmos, e em ti, minha tempestuosa artista. Não se assuste com as perspectivas e as matérias de jornais, aceita em teu coração o expurgo que se aproxima, o Senhor lhe guarda, lealmente. Usas de teus olhos lúcidos e de tuas mãos habilidosas, pinta o nosso amor de fim de mundo. Tenho vivido apenas pra ser teu amante, seguirei sendo pelo tempo que me concederes ou até que o golpe do carrasco venha.

Entretanto, preciso pedir-lhe que redobre seus cuidados, meu amor, pois coisas terríveis nos espreitam lá fora e eu jamais prosseguiria sem você.. Ouvi pelos mercados que o pior está por vir.

Orarei por nós esta noite,
Penaforte

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