quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Filhas da Terra

Tu conceberias senhores do tempo?

Conceberias criadores de universos?

Crês, dentro do peito vacilante, que alguém controla o clima destes dias?

Vês as tempestades e os mares que se abatem sobre os homens

E ignoras o poder da terra.




Não posso amar os símbolos criados por homens

Que nunca entenderam a natureza.

Corpos reunidos em templos de pedras,

A ver, através de vitrais, um mundo que julgam dominar,

Encomendando preces e benções,

Pequenos fragmentos dessa luz que os cega.

Almas pequenas de ingratidão,

A vós que o jardim foi criado, a vós que ele serve,

Cada emaranhado de folhas secas que descansa no solo deste bosque

Conta uma história,

Em nenhuma delas há deuses.




Tua pequenez não permite sonhos grandiosos,

Das façanhas mais humanas, das possibilidades inerentes

Apenas aquilo que nós vivemos.

Tua simples mente domada reproduz devaneios

De ninfas e sereias, de anjos que nos regem,

Do senhor furioso que escreve as leis da tua vida.




Mas as nuvens não têm senhores,

Servem apenas ao ciclo comum de todas as coisas.

As ondas se levantam muito além do que tu pensas,

Muito além do que teus olhos podem perceber,

E tudo conecta-se, o céu e o mar,

Estamos todos ligados,

Tu temes a tempestade e a fúria,

Apenas me reconheço.




Ainda não conheci a fé que move montanhas,

Mas tenho visto montanhas por todas as partes,

Como poderia crer na fé dos homens?

Reverencio meus verdadeiros antepassados,

Pequenas criaturas de um vasto oceano.




Renegarei tuas profecias até o fim,

Eu quero a fé orgânica, a crença natural,

Quero a prece dos rios, o rito dos solos, todo o misticismo dos mares,

Vou aprender aquilo que as raízes ensinam,

Olhar a lua enquanto a noite se estende e despertar o sol,

Quero meditar na brisa serena,

Todo este planeta é meu lar.




Não travo batalhas com o tempo, amo aquilo que não permanece,

Tudo que existe é o aqui e o agora,

Do meu passado levo apenas a memória,

E meus olhos aceitam com doçura até mesmo o que não compreendo.




Teus deuses tem nomes e séquitos,

Estátuas de mármore e versos em línguas,

Os meus estão por toda parte,

Nem mesmo precisam de mim.

Deixo os homens e suas divindades,

Nós somos filhas da Terra.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Promessa

Em certas noites, tudo em mim queima por dentro

E eu vou buscar o alento destes velhos conhecidos,

Amores esquecidos, coisas de outros momentos,

Frágeis monumentos destes tempos já perdidos.


Sei que sou amargo, tantas vezes me arrependo,

Mas não vou viver sofrendo a minha segunda vida,

Vou buscar outra saída, vou continuar crescendo

E florescendo estas poesias tristes e sem cabimento.


Este, aquele ou qualquer outro, nada disso diz de mim,

Só quem fica até o fim tem direito de falar...

Previsões pra descartar, só eu sei a que vim,

E não há arcanjo ou serafim que hoje possa me parar.


Não volto a ser quem era, vou continuar mudando,

Pouco a pouco acrescentando outras faces nesta peça,

Só quero o que me interessa: endoidar de vez em quando,

Sem deixar um memorando, sem fazer qualquer promessa.


sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Se a vida fosse justa

                                                                Ao Amigo Ernesto Penaforte


Se a vida fosse justa, nós, meros mortais neste templo,

Nem mesmo conceberíamos.

Afinal, que é que podemos saber, amado irmão?

Ao fim da curva, a estrada se estende ao infinito,

E nem mesmo sei quanto deste caminho percorreremos lado a lado.


Paredes erguidas de concreto e sonho, 

Uma cidade inteira em que nós dois, a despeito do tempo

                                            e de qualquer responsabilidade]

Inúmeras vezes desbravamos,

Tu contava-me de afeto e ternura,

Eu empilhava os corpos das vítimas de teu charme,

Mas tudo estava bem, os mortos não tem sentimentos

E você tem demais.


Por isso é que digo, a tu somente, meu amigo,

Que se a vida fosse justa, nenhum de nós saberia.

Desenganados novamente pelas expectativas

                                        de sucesso, de holofotes, 

                                        de quartos de hotéis destruídos]

E as filas de pessoas a ir e vir

Das quais jamais nos lembraríamos dos nomes,

Apontando ao Penaforte ensandecido

A tirar frascos dos bolsos do paletó,

Transbordando interesses mesquinhos,

Mesquinhos como nós.


Como eu te amo, meu querido amigo, amo a ilusão que criastes

De que eres qualquer coisa além de um patife,

Me faz acreditar, mesmo que por pouco tempo, que há de fato

                                                     algo de bom no mundo]

Afinal, onde é que encontraria, em um mundo repleto de patifes

Canalhas amontoados em mesas de bares no centro da cidade,

Um outro patife como vós?


Quisera, porém, compartilhar da fé inabalável,

Vós, o verdadeiro publicitário da cristandade,

Cavaleiro desmontado de uma cruzada inútil,

Pois os Deuses nunca lhe pediram nada...


Ainda assim, tu levantas o estandarte do passado

E vai reler os clássicos em seu tempo livre.

Um nobre vagabundo - se me perguntas - é o que tu és,

Da mais alta estirpe dos calhordas dessa terra,

Enganando a quem quer que saiba ler,

Com essa classe de lorde inglês no verão de dez mil sóis 

                                                   desta antiga Vila Velha.]


A natureza realmente é admirável.



Salamandras & Serafins

                                                                 Ao Amigo Inácio Arcanjo.


Querido amigo, tenho orado em teu nome,

Que a graça do Senhor desperte teu olhar,

Que tu há muito já não sabe o que é amar

E é só escravo de um vago renome.


Tu, que confundes, forjas e falsificas

Qualquer traço de afeto verdadeiro

Em teus disparos de reles cancioneiro,

Nunca entendeu que amor é pra quem fica.


E sei que vais partir, é do teu tipo,

Apaixonar-se por bem pouco, quase nada,

E dar as costas ao sinal de tempestade.

Mas a ti, meu caro amigo, eu antecipo

Que a solidão é pouco a pouco conquistada,

E tu há muito demonstrou tua vontade.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

De Outrora

                                                                       Ao Amigo Matheus Oliveira


Amigo, confesso que sinto saudades,

Não deste que tu se tornastes, jamais,

Daquele que há muito deixastes pra trás,

Convencido de não possuir qualidades


Tu, o de outrora, de tantos assuntos pendentes,

Grosseiro a seus modos, omisso, de certa forma pedante,

Que mesmo afundado em mau humor ainda era interessante,

Que destes lugar a esta figura, de tédio completo e evidente


Tu, o de outrora, de tantos amigos e amores

Que nunca negava abrigo, cerveja e poesia

Que ainda conversava, com tudo que conseguia...

Hoje escondido em receios, enclausurado em rancores.


Vê se volta a ser quem era, ou ao menos tenta,

Pois nossos amigos lamentam teu presente conturbado,

No fundo, tu bem sabes, que és melhor ao nosso lado

Vem e escreve logo, sobre a saída da tormenta.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Corpo e Alma

                                                        À amiga Beatriz Cruz de Sá


Dias em silêncio, noites de ternura,

Nestas armaduras, que chamo de corpo,

Tu estendes um lenço, sabes que a vida é dura

E que não há bravura que me cure por dentro


Muito foi falado, pouco me foi dito,

E eu corri perigo, só porque sentia tédio.

Muito foi falado, nada foi ouvido,

Meu ópio favorito é a ausência de remédio.


Mas você permanece, em silêncio, ao lado meu

E já não tenta amar outra pessoa, que não sou.

Renovo minha prece, vou negociar com Deus,

Aceitar que aconteceu e esquecer o que passou.


Se ao menos eu pudesse te abraçar de corpo e alma,

Concordar, com calma, que estes males vem pra bem.

Se ao menos eu pudesse te abraçar de corpo e alma,

Coração, vê se te acalma, outro amor não me convém.



sábado, 9 de outubro de 2021

Nada Diz De Quem Tu És

Agradeço pelas palavras doces, mas não as quero,

Nem quero ter de ti qualquer lembrança, nem destas vagas horas que passamos juntos

Entre semáforos e sinais (nas primeiras gotas da tempestade, que ainda cairia) 

Displicentemente costurando carros na Avenida do Contorno,

Entre uma parada e outra dessa vida que julgávamos levar

E, pouco a pouco, nos levou ao destino que temíamos

(Mas tu sabias, querida, tu já sabias...)

Nem mesmo quero recordar da voz erguida e do silêncio que abateu-se sobre nós

Nem de quando já não podia mais conduzir este acidente, anunciado e postergado, 

Miragem embutida artificialmente em todas as esquinas e pontos de ônibus

Retratando em tons mais cômicos as tragédias que viveríamos,

E - ainda assim - foi tudo em vão.

Agradeço os gestos todos, até mesmo os de barbárie e hostilidade,

Afinal, todos serão anulados pelo mais refinado aço

Desta vontade resoluta que defendes 

(e que, a fundo, nada diz de quem tu és).


quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Versos Quase Íntimos

Vês, ninguém mais veio assistir ao formidável
E surpreendente enterro de mais outra quimera.
E enquanto eu me metia com a pantera,
Só restou tu de companheira inseparável.

Eu já sei bem de toda a lama que me espera
E já me acostumei com a ideia inevitável
Mas a batalha só me é desfavorável,
Se não houver tua ajuda pra enfrentar a fera.

E assim vamos, em traços e tragos e cigarros,
Em casos e abraços e encontros e esbarros
Nos modos mais bizarros que podemos ter

As piores dores são as que mais divertem
Que as pedras jogadas nunca nos acertem,
E lembre-se, sempre, que estou com você.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O Coração Continua

                                                              Ao amigo Ulisses de Carvalho


"Entra no mar, meu doce amigo, entra no mar
Que aqui nós todos temos corações quebrados
E os nossos sonhos também foram naufragados

Entra no mar, meu doce amigo, entra no mar
Que muitos deles vão te relembrar das sombras
Mas nenhum deles sabe que amanhecerá!"

Vistes, meu caro, que o coração continua, não é?
Te deparastes com a inevitável queda neste abismo de si mesmo,
E entrecortado pela angústia que nutrias, silencioso,
Gritou sozinho na esquina de tua vida, 
Ignorante da guinada que lhe vinha logo em frente.

Vistes, meu caro, que o coração continua,
Músculo, sobretudo, ativo e operante,
Até que se mostre incapaz de exercer esta função,
Músculo, sobretudo, o músculo que sustenta o corpo, 
O corpo além corpo, aquele que ignoras,
E despenca débil no abismo.

Vistes, meu caro, que o coração continua,
Teu núcleo metafórico de carne,
Pungente de dores e horrores e amores,
Tua bomba de angústias e sangue que lhe toma as veias
Ele continua, a despeito de ti.