quarta-feira, 4 de maio de 2022

Pira Funerária

Tu lembra-se, meu amigo, de quando embarcamos nesta viagem? Crianças auspiciosas, de ímpetos largos e ideias estreitas, tu e eu éramos sonhos prestes a se eternizar. Acendia outro cigarro, elemento curiosamente unificador pra duas almas que pouco a pouco distanciavam-se, dos outros, certamente deles, mas também de nós mesmos, até restar ao outro apenas mão amiga, já seca de essência.

Por vezes subimos ladeira íngreme, sem deitar ao chão nada além de suor e sorriso, tu sempre foras de disfarçar bem tuas angústias, enquanto eu trovejava firme, com certo prazer em ser ouvido ou ao menos escutado. E aí vinha a decida, que era pra adiar o sonho. Quantas vezes sentamo-nos, já esvaziados de quaisquer sentidos, às portas e portões surrados, meio-fios atravessados, becos sujos, de esquinas duvidosas, um paraíso pra nós dois.

Pretendo dizer-lhe que havia algo ali, uma lealdade tácita dos pactos sanguíneos de outrora, decisões silenciosas que se transmitiam, de alguma maneira. Tu não cria em nada, mas tentava dizer-me que tu e eu éramos ligados, eu, bruxo autodidata, sempre soube que este teu nome de rei é que me fez de conselheiro.

Cedi ao encanto, prestei-me a ler teus mapas e as cartas de tua sorte, por anos escondi que este desfecho já nos vinha, pois de cá de minha torre, só restava sombra tua. Teu castelo se fez longo, e logo a caminhada era uma viagem que tu já não permitia-se fazer, flácido de vontade e esgotado de paciência, sentado ao trono deste império, que fui eu quem construí.

Mas tu desfez o cerco, quis buscar uma outra vida abaixo de tabuletas e panos de mesa porcamente quadriculados. E quando a chuva caía mais forte, tu lembrava-se daquelas tempestades, num sentimento misto de terror e de saudade ao ver que o tempo havia passado, mas teu passado ainda não. De mago ausente, tu cravou tuas armas nas paredes e prometeu a rendição, havia cansado-se do sonho, pois eram tantas as batalhas...

Agora tu vens, cobrar de volta o anúncio que omiti, como se pudesse encontrar algo que perdeu-se há tanto tempo, algo que não poderia ser substituído, mas que era continuamente esquecido por ti. Teus olhos graves, de ódio e ternura, vão buscar em qualquer sombra a luz de minha fogueira, mas eu já me queimei há muito tempo, majestade.

E tu vais cantar, tu vais contar a mesma história, por vezes repetida, tu vais citar verdades da mentira que criamos. Já não posso elaborar esta aventura pra nós dois, e como a mim - e sempre a mim - cabe o ofício da escrita, vou guardar-lhe como conto antigo, tal qual aquele que serviu de inspiração à nossa história e descansou na bruma dos sonhos da eternidade.

Somente a mim cabe este triste ofício, de ser quem tem tudo a sentir, dos feitiços às lembranças, das cartas, das marcas, da pele e do silêncio. Tuas memórias merecem respeito, sem o tom grotesco e mórbido de uma pira funerária, mas da classe de uma nota no jornal da tarde, que vai me fazer sentir mais uma vez todas estas coisas que escolhi evitar, num cumprimento solene de chapéu coco, posso até dar mais um trago pelos santos que intercedem, me levando pra outro mundo, em que tu já não estás.

A tu ainda cabe a tabuleta, as incertezas deste dia e de outros tantos que virão, sem previsões, nem maldições, sem ninguém pra te avisar. A nós cabe esta nota de viagem repartida, eu entrei pelo retorno, 

Tu buscaste outra saída.