sábado, 12 de março de 2016

Muros, Postes, Luzes, Praças e Avenidas

Já não há mais no mundo o aspecto humano da caligrafia
Não há mais a possibilidade de encaixar nos versos rápidos a vontade pura que as mãos transparecem
E assim como não existe mais o estudo não existe mais a essência.
Tudo há de se perder.

Devo ser um ser tão prepotente
Ao ver em mim a dor que aflinge os que admiro
Ler tantas frases e me ver nos intervalos
Mas o que mais resta de mim?
Eu falhei como exemplo, falhei como modelo, falhei como autor
Estou criando a recriação do que já existe
Repetindo aqui por tantas vezes o sofrimento e a metafísica e a indisposição
O fardo de carregar por tantas noites a falta da Tabacaria de defronte

Parado nesta janela para observar a vida eu me deparei com o muro
E no muro me deparei com meu limite
E no meu limite eu me deparei com tudo aquilo que já não é mais vida, tudo aquilo que já é mais nada
Saber de mim o que? Sou a cópia do que eu queria ser, me rendi à influência, me doei à dor dos outros para carregar ao meu próprio peito hipotético mais humanidade do que eu mesmo conheço.
Não quero mais pensar além da minha calvice e do peso da existência que sustento, há em mim tão poucos sonhos e quantos deles eu já abri mão há muito tempo?
Eu releio e folheio tanta obra, encosto os olhos nos pedaços de minha alma
Da personagem que criei para mim mesmo e que me criou sucessivamente
Como a metafísica das pedras em meu calçamento eu hoje sou duro, seco, morto, estático
Não estou conectado com nada superior, nem mesmo sei se existe o superior a tudo isso
Mas resumi minha vida na intenção de ser sublime

Eu entendo.

O que há de real por fora? O que pode haver de real por fora? Onde mesmo que isso começa?
Não, eu não quero a compreensão das entropias, sei que o rabiscar dos papéis antigos guardam mais de mim do que as teclas da modernidade. Eu me perdi antes mesmo de ter começado.
Não há resposta, não, não há. Há apenas um ser que queria ser outro e que entende a visão passada de que qualquer outra pessoa deve ser melhor do que a pessoa que sou. Tenho irmandade com coisas que não tem irmandade. Falhei

Talvez em tudo, talvez nem mesmo entenda o que tenha feito.
Sei que atravessei a rua e comprei outro cigarro, olhei pros lados e vi que as pessoas estavam lá, mas onde é que eu estava nisso tudo?
As vezes o mundo se fecha em coisas muito além do mundo e a gente tenta se lembrar dele de uma forma melhor do que a real
Enquanto o Destino me conceder, continuarei me enganando.

Há tantos gênios e tantos modos de ser genial. Talvez eu me conceba grande demais para tentar, porque é tudo fácil, é tudo tão pouco desafiador. O grande desafio é me manter de pé e assistir o muro defronte a janela que tem mais muro de defronte e mais janela por detrás, pensando que depois dessas fronteiras deve haver gente feliz.
Vocês precisam da felicidade, eu preciso compreendê-la.
Mas há mais assinaturas de gênios contidos em meu armário em meio aos livros que eu queria ter escrito do que palavras para expressar minha desolação.
O mundo é frio, cinza e errado.
Tanta gente se deteve esperando ao pé da porta de uma parede sem porta e eu aqui ainda grito para que abaixem a ponte
Talvez se eu tivesse olhado para o outro lado eu fosse feliz, mas aquilo que se esconde no que está a vista é muito mais grandioso e eu quis ser rei desse universo.
O universo me devolveu em responsabilidade e eu fui criança correndo de volta para a indisposição das coisas mundanas.

Se há no mundo um ser como Pessoa, se há na história uma verdade como a de Whitman, se há na terra o rastro de um Saramago, como posso eu esperar que a ponte baixe e os aflitos do outro lado vejam em mim uma resposta?
Eu nem me entendo, como posso guiar alguém à compreensão?
Temerário de meus objetivos eu redigito algumas palavras, por saber que das palavras pouco sobrarão, assim como a tabuleta se foi, assim como a tabacaria se foi, assim como a janela defronte se fechou, assim como o cigarro de quem observava se queimou e os olhos se fecharam,
Eu não preciso ter em mim todos os sonhos do mundo, porque assim eu deixaria o mundo sem sonhos
Eu só preciso guardar os meus sonhos em algum lugar mais rígido do que meu peito e mais protegido do que a minha mente.
Porque quando levantamos a metafísica vem, trazendo a consciência de que o pouco é quase nada e nós somos a migalha do que resta desse nada.
Veja bem, o que eu poderia ser então?

Vou correr os olhos na prosa de outrora
Vou passar meus dedos pelas capas desgastadas
E desejar mais uma vez ter morrido há mais de um século
Porque lá o significado pouco importaria, seria passado e do passado a gente só guarda o que quer.

Ouso mencionar a arte que me preenche em meio à minha própria sujeira
Como poderia ser mais arrogante o jovem que lê as frustações de qualquer velhice como as suas?
Num instante eu acordei e quis correr atrás do tempo perdido e quando vi o tempo estava bem em frente, apresentando um caminho que eu nunca havia notado
Mas era simples e eu desdenhei
Era fácil e eu gargalhei da sorte
Onde foi que eu perdi a fé que sou maior do que tudo isso?

Quanto altruísmo eu gerei, quantos ideais nobres e belos eu construi com o olhar frio como mármore
Quanta genialidade eu desperdicei querendo ser melhor
Quanto de mim eu deixei pra trás nessa imensidão de versos e mais versos que nem mesmo eu consigo ler, porque aqui a minha verdade grita e aponta para mim, aqui os julgamentos são reais e eu venho sendo condenado há mais tempo do que posso recordar.

Sigo pedindo para que os terceiros se lembrem de mim como alguém melhor do que sou, assim como fazemos com o mundo para manter a esperança.
Mas há tanto chocolate no mundo que a modernidade poupou da folha de estanho, as distrações estão no ar, são paupáveis, são tangíveis e os terceiros já não tem mais tempo para nada além da auto-confissão da confeitaria e a completa ignorância à tabuleta e à tabacaria e à prosa e ao que quer que tenha acontecido com a poesia.
Não há mais tempo para a metafísica, todos entenderam que é só uma questão de indisposição
Mas eu resisto bravamento como um guerreiro, travando a guerra imaginária no meu peito para atropelar meus próprios moínhos de vento.

(Talvez eu não seja tão ruim quanto imagino, talvez haja glória em mim, talvez eu tenha aberto os olhos dos outros pra realidade)

Mas a própria realidade vem fechando os meus olhos, porque eu não posso fazer parte disso aqui, eu não sou nada além da janela por detrás da janela que está, por sua vez, por detrás do muro. Eu sou a janela coberta pela cortina translucida, deitando ao chão espectros do que se passa em minha antivida, minha anticomplexidade, minha antiserventia para um mundo que já não precisa de serventia

E eu também tenho vivido, tenho estudado, tenho criado, amado e acreditado
Apenas para desejar que tudo se dissolva no que existe de mais sublime na Criação, a capacidade de sublimar e perder a forma para se unir ao ar, preencher o vazio com a própria ausência de forma e encontrar a resposta na falta de resposta.

Presunçosamente eu entalhei meu rosto em uma máscara, coloquei por cima de minha face e entalhei de novo e por cima disso esculpi minha marca.
Prendi o ar, tossi forte e quis fumar outro cigarro, mas quando vi a máscara já não mais saía, estava pegada à outra máscara que estava pegada à outra máscara que talvez seja meu rosto
Com esperança nada mais cairá pelo caminho
Eu envelheci em espírito, me embebedei em ignorância, me vesti nas armaduras invisíveis de minha pele
E quando vi estava aqui, no mesmo lugar, formando versos sobre os limites que o muro impõe

(Pausa aqui para a retratação devida, pois o tempo passa, mas a irmandade com as coisas sem irmandade permanece. Não há inutilidade em nada que seja passado, o errado é manter as qualidades encobertas pelas peles da vaidade, lidar com a rejeição dos outros é ruim, mas quando seu próprio corpo te rejeita as possibilidades são mais dolorosas)

Talvez contrate alguém para reformar o muro
Talvez contrate alguém para consertar a máscara
Talvez eu mesmo seja o alguém que irá fazer as tarefas que são sempre delegadas, porque assim a metafísica fica do lado de fora e quem sabe quando a noite deitar na terra, seja outro aflito que escreva versos como este, apenas para morrer na indiferença do primeiro sol.
Mas de que serve? Pois o muro cairá, assim como as máscaras caíram, assim como a rua perde a forma, assim como a casa se enche de mofo e umidade de quem há muito morreu aqui dentro.
As luzes aqui dentro se apagaram há muito tempo, mas as pessoas ainda transitam, cegamente procurando portas e escadas e salas de jantares
Eu só quero gritar que não há toalhas de mesa e panos de prato o suficiente para cobrir o vazio ridículo dessa cena e derrubar a cozinha para que ali surja algo a mais
A resposta talvez seja outra cozinha e outro jantar e outros talheres e outras bocas, famintas, assim como as primeiras, caladas, assim como as primeiras, me olhando fundo nos olhos sem enxergar nada do que eu posso expressar

Sinestesia morta dos meus versos inúteis.

De qualquer forma os passarinhos vão cantar, assim como eles devem fazer até o fim de suas curtas vidas
Eu devo escrever, porque é essa a contribuição que deixo ao mundo da metafísica indisposta dos carros com filtros em seus canos de descarga e das janelas que silenciam os gritos de agonia por todas as noites,
E vou apertar em qualquer que seja o peito hipotético que criei a monstruosidade humana dos sentimentos que venho alimentando, porque é isso que eu sou, é isso que eu posso ser.
Quando tudo acabar eu só espero que ainda hajam cigarros

Enquanto o Destino conceder, continuarei fumando
E sendo prepotente por julgar que entendo a dor dos que sentiram dor muito antes da minha vida
Desse desperdício de teclas e espaço em branco em frente a tela que brilha sozinha na casa apagada das pessoas que se apagaram e que trabalham para apagar outras pessoas no mundo burocrático das luzes elétricas nas avenidas que fazem as pessoas enxergar a escuridão que estão criando.

E quando eu repousar minha cabeça nos travesseiros duros, talvez crie a resistência que minha alma precisa
Talvez eu seja melhor quando o lençol for confortável, talvez eu seja melhor se não estiver tanto calor
E quando eu acordar amanhã eu abro a janela e agradeço ao muro por estar ali, dou bom dia ao pintor que veio remendar os descascados, renovo-me pela terapia de enxugar as lágrimas com coisas insólitas
Me apaixone mais uma ou duas vezes por pessoas que são mais felizes que eu e poderiam me proporcionar a vida mediocremente feliz e completa que tenho desejado
Desde que entendi que o medíocre é sublime.

Mas a luz dos postes das avenidas se apagaram, as pessoas se perderam, a metafísica atuou
E aqui eu permaneço sozinho com os fantasmas das pessoas que amo sem nem ter conhecido
Compreendendo perfeitamente a necessidade de uma tabacaria defronte a janela, para que os cigarros fiquem cada vez mais acessíveis.
Levarei mais chocolates em meus bolsos daqui em diante, para dopar a sensação de estar preso em uma conspiração milenar, onde os que sofrem são escolhidos a dedo

(Filtros vermelhos e olhos vermelhos
Cansaço das coisas cansadas que andam nas calçadas
Conheço tanta gente feliz e ignóbil e por isso ridiculamente completa
Talvez se eu entregasse as teclas ao próximo aflito a própria aflição me devolvesse a essência das coisas que se perderam)

Não, dessa vez eu só quero dormir

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