quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Pego-me, ao pé desta janela, em este tempo e constante,

Pego-me, ao pé desta janela, em este tempo e constante,  A imaginar se uma de vós, crianças do futuro, será, como eu fui e tenho sido, a cisão da ordem natural das coisas, fratura exposta no tempo e no espaço, Na busca constante por sentido e razão.


Caso seja, minha alma extemporânea, 

Que isto te acalme, se possível for, pois ao pé desta janela de hoje, penso nas noites de insônia de Campos e nos homens modernos, 

De dores modernas, e vejo tanto de mim.


Se foram cem anos daqueles de Orpheu, e logo cem anos dos tais de Presença,

E o que sinto e escrevo diz do tempo de agora,

Do vazio que sentem os meus companheiros, que atravessam calados, os que escolhem calar, 

Uns poucos que sentam, distantes, em bares e sentem calor no reconhecimento mútuo, no compartilhamento, mesmo que superficial, de propostas para assuntos que a fundo não entendem

(E quando entendem, o que é que podem fazer?)

Nas noites vazias, sentem prazer em coisas igualmente vazias, dispostos frente a frente em outra discussão qualquer.


Como quem diz, pega-me outra, estende as mãos ao ar,

Meu companheiro mais leal em tantas velhas madrugadas,

Ao soar do abrir das latas, eu me perco em outro sonho

Do passado mais marcante que tivemos e se foi

Quanto mais se foi também? Quanto mais irá passar?

Quanto disso tudo podemos guardar ao longo dos anos? 


Quantas memórias tão doces e tenras, serão esquecidas, e, por isso, talvez ainda mais doces e tenras, sabendo, no agora, que possas perdê-las em breve, de vez.

As lágrimas que seco na manga de meu paletó, desafogam consigo sentimentos que não são

Originalmente meus, mas são, diante da medida das coisas que sinto, reais.

Reais, como todas as coisas em mim também são.

Reais, muito mais reais do que do que o mundo que me cerca e se pinta de progresso, por sob a face pobre e cinza.


Mas tu, criança do futuro, tu ainda nem nascestes,

Tu ainda nem vivestes o que o mundo lhe reserva,

E guardo a ti um voto de que seja bem melhor

Do que, aqui em minha época, o universo me relega. 


As coisas que nutro, sem nem mesmo considerar que tenho nutrido e colherei, seja lá como for 

<<Afinal, o que destino não cobra em suas curvas e a gravidade não pesa em suas quedas, a consciência toma-lhe em prazer>>

Os momentos de solidão que se alongam durante os dias, 

As conversas que se tornam mais rasas em detrimento desse abismo em mim, que sempre se aprofunda, e me faz perder o jeito… 

Constantemente perder a compostura e lançar tudo pros ares, Atear fogo nessa ideia do que sou, mas que só me dura sempre um tempo, Sempre um mesmo, e intenso, tempo.

Só dura sempre um mesmo tempo, porque ateio fogo quando me canso de mim.

E eu sei que escolho isso, sim, e em certa medida escolho porque isso me estimula e me conecta com esse sentimento, que tu, criança do futuro, sentirás quando me ler.  


Sim, quero mais é que esse turbilhão se adense e que a tempestade caia desmedida,

Se tiver que ser,

Quero desviar-me um pouco mais a cada noite do objetivo central, pra perceber sua forma completa, pra sentir tudo e de todas as formas.

Quero a estrada mais longa, de chão batido, que levanta poeira quando corro,

E ainda assim, vou correr.

Eu vou sim, sei que vou correr,

Sei que vou ter pressa as vezes e esquecer que tenho um plano,

Perder-me na neblina do tempo,

Na bruma do sonho,

Na poeira da estrada,

No simbolismo de tudo isso

E em coisas que só se passam em mim, e por isso indescritíveis.


Mas que tu entenderás.


O que tu ainda não entendes, e nem pode (e eu também não entendia antes), é que essas coisas tem que se passar imersas em nós mesmos.

Nenhuma dor pode tomar conta do que tu és, criança,

Nenhuma angústia tem o poder de fazer-lhe menor,

Portanto não diminua-se em tua autocomiseração,

Que prometo deixar-lhe apenas palavras boas.


Deste meu tempo ficará apenas a ideia da janela sob a vida, mas a janela e a vida haverão de se perder nesta curva do tempo,

Que teima em tirar de vista aquilo que ousamos construir com nossas mãos.


Quando o tempo agir, tu também perguntarás se tudo aquilo que fizestes e sonhastes valeu a pena

<<E, afinal, tudo vale a pena, se a alma não é pequena>>,

Enquanto eu, de meu descanso eterno, renderei-lhe um sorriso e um chacoalhar de ombros, como quem diz:

“Que é que sei, doce criança?

Se como tu, também vivi, amei, estudei, e até cri, e ainda assim perdi-me em tanta inveja e desatino. fica em paz consigo, que não há resposta alguma na criação que possa lhe trazer a paz que tu desejas” 


Tu também se pegarás ao pé de coisas como janelas, a pensar em versos como estes e em homens, que por sua vez serão como os meus poetas modernos, que tencionam moldar-lhe a mente e os modos. Mas sê apenas como tu és,

Assim como eu,

Fui e tenho sido


Ao pé desta janela de agora,

Pensando na paz que ainda não posso ter.




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