sábado, 23 de setembro de 2017

A Arte da Esquiva

Devo abaixar o tom de voz mais uma vez, é inteligente se fazer imperceptível, pois o que não é visado não é afetado. É assim que a gente vive a noite, sendo a sombra da própria sombra, até quase esquecer que a existência é concreta. Nos esgueiramos pelas portas e janelas, tampando as frestas que acusam o dia, por favor, nos tire a sanidade, mas devolva a noite.

Devo desviar dos móveis e tirar os meus sapatos, pois qualquer som é alto. A gente aprende a ser discreto e guardar a própria voz, dar ouvidos às paredes pra notar qualquer tremor e até mesmo fecha os olhos por pretender ser invisível. Lutando contra si mesmo pra dormir durante a noite, e sentir a derrota do amanhecer se repetindo. Hoje é terça ou sexta ou domingo ou quinta ou qualquer dia, porque todos são iguais, eu nunca quis existir em nenhum deles. E é difícil se anular durante o dia, porque o sol consola os doentes, mas não os renova. Vamos levantar da cama e sorrir para os porteiros dos prédios, não nos permitiriam o ócio, não nos permitiriam o silêncio, não nos permitiriam o torpor. 

E a cabeça segue zonza, em decorrência de outra tentativa de encerrar as coisas no auge, seguir não sendo a partir de uma lembrança feliz, uma noite gasta em meio aos meus. Não fomos feitos pra alvorada, nós nos escondemos em nossas próprias cavernas, nós nos esquecemos do que reside lá fora. O mundo não é meu, esse mundo não. E assim a gente prossegue por mais algumas semanas, resistindo às duras penas da sociedade: Pagar, coexistir, contribuir e obedecer. Seguir de preto pelas ruas cinzas, pois não devo me prender a nenhuma classe que não me honra os honorários. Abotoadeiras, gravatas, cintos, sapatos sociais, valises idênticas. Metrificados, aparados, limpos. Deus sente orgulho de vocês. Do resto ele se esquece.

Vocês que dormem cedo não sabem o que é ser forte. Vocês que acordam cedo não sabem o que é a angustia. A sensação de estar sozinho que é sempre amargo-doce, se questionar sobre os desejos e a fonte da inspiração. Eu desvio das cadeiras, pois não quero ser culpado por nada. Eu ando pelo piso mais certeiro, evitando sempre o ranger das acomodações, descansando em parcelas, pra se deitar cada vez mais devagar... tudo é tão barulhento.

Não posso dar mais evidências, a noite avança. Logo vem outra batalha, logo vem outra alvorada, e eu continuo aqui, me permitindo ser o nada que reside no quarto ao lado, me permitindo deixar o rastro de minha própria imundice. Metamorfoseado em qualquer animal selvagem que se esconde por instinto, pois sabe que todo e qualquer ser humano é um predador em potencial.

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