terça-feira, 19 de abril de 2011

É Tarde

Já era tarde, muito tarde, mas ainda assim ele continuava imóvel... sentado naquela cadeira como se pudesse impedir o tempo de correr. Apenas suas mãos se moviam, escrevendo rapidamente sobre um papel já muito manchado de várias tentativas frustradas de se expressar de uma maneira no mínimo coerente.

"Pois bem, hoje eu resolvi me desculpar por todos os meus erros. Talvez seja apenas o efeito do silêncio da madrugada no meu cérebro discretamente cansado, mas ainda assim não vou deixar passar essa "sensibilidade" estúpida que me toma.
Eu queria poder assumir pra cada pessoa cada um de meus pecados, mas isso levaria tempo demais e o meu tempo escasso raramente se encaixa com o tempo dos outros, então vou fazer desse papel meu confessionário.
A todas as vítimas da minha arrogância, eu peço paciência (mesmo aos que já são por natureza pacientes demais). Detesto essa rotina de julgamentos que me envolve, enquanto julgo a todos pelas costas, todos me julgam da mesma maneira. Já estou cansado de ser assunto e não companheiro, mas não tenho o direito de tirar isso de ninguém, quando nem ao menos consigo tira-lo de mim mesmo.
Aos que sofreram com minha inconstância, peço que deixem de lado. Sei que é difícil separar o que sou do que eu "estou sendo", mas é injusto sofrer por algo que nem mesmo eu controlo, da mesma forma que é injusto pedir que esqueçam algo que eu me lembro a cada dia.
Quanto aos que se machucam com a minha intolerância, peço compreensão. Já é difícil demais tolerar a mim mesmo, convivendo diariamente com tudo o que eu citei nessa "análise", imaginem então tolerar o resto do mundo. Entretanto, não me julgo indispensável e entendo perfeitamente o fato de que não sou o único que lida diariamente com a luta entre consciente e inconsciente e, portanto, não julgarei que não puder me tolerar também.
Aos que sofrem por qualquer outra característica que foge ao meu controle, peço tudo o que já pedi e que saibam perdoar. Nenhum homem é perfeito, mesmo que alguns (como eu) sejam completamente imperfeitos."

Ele dobrou o papel e guardou a caneta. Isso não deveria ser entregue nunca, pois se confessar pelos pecados de hoje é apenas mascarar os pecados de amanhã. Pois ele sabia que já era tarde, mas nunca era tarde demais.
(Pra errar ou acertar, no final tanto faz
Pois tentar consertar é apenas estragar mais
Nenhuma tentativa basta, é esquecida, apagada
Só o resultado vale... querer muito é fazer nada)

2 comentários:

  1. Gostei, há tempos não lia um blog com textos que tocam assim. Mas será, autor da carta nunca entregue, que existe o "eu sou", não seríamos só "o que estamos sendo" e nada mais?

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  2. Todo ser é estar sendo, ninguém é definitivo... eu acho

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