domingo, 28 de setembro de 2025

Calvário de Shiva

Devo minha vida à poesia.
A alma é dos Deuses, que estendem a mão em cobrança.
O pagamento, obra tão simples, reparte-se entre meus iguais.
Devo
E pretendo pagar o valor integral,
Em franco apreço à palavra
Ou juventude desvairada, 
Que me fez a negligência.

Devo e isso desfaz-me.
Ao contraste, esta dívida velha
Renova-se em mim,
Cresce em minhas entranhas 
A urgência
E já não posso continuar.

Devo encerrar este capítulo.
Pontuadas as causas, 
Detalhadas as contas,
Agora me abro às demandas
De Caronte.

Devo seccionar-me.
Em punhos a lâmina fria,
Passageira e condutora 
Do milagre reverso,
Que já não deseja estancar qualquer 
Sangria.
Devo aceitar toda vazão.

Devo alçar voos mais longos,
Sem prever os resultados.
O concreto me aguarda,
A despeito da certeza
De todas as quedas.
Devo aceitar que o impossível 
Está sempre do outro lado
Da janela.

Devo amordaçar-me.
Estrangular o cínico lamento,
Cessar qualquer vestígio
De palpitação desesperada,
Até restar o nada,
Profusão lírica de todo vazio.
Devo suprimir o pulso
Da angústia.

Devo intoxicar-me.
Tragar o ácido,
Amar os venenos que me corroem.
Então encerro a dúvida,
Pois o futuro cabe a quem ainda não veio.
Devo ingerir esta cicuta,
Assassina de temores.

Devo buscar o fundo.
Deitar-me seguro em leito de rio,
Fundir-me à naturalidade das coisas,
E, de corrente em corrente,
A rotina transforma o hábito,
E a vida floresce às margens.
Devo afogar as mágoas.

Devo despedaçar-me.
Moer, triturar, misturar,
E eu, alimento de vermes,
Conhecerei as raízes,
Só assim me encontro
Frente ao palácio da origem
E questiono o verbo
Sobre o começo.

Mas o caminho das coisas permanece inalterado,
E ao contraste, esta dívida velha
Renovando-se em mim, já em outros planos,
Paga-se em carne e sangue.
Devo matar o que sou 
Para viver o novo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Predador e Presa

No começo fez-se o laço de armadilha simples
Pra quando teus olhos cruzassem os meus.
E assim, tu, presa de arcanjo torto,
Vistes dois desastres se anunciarem:
O desgosto e o delírio.

No segundo dia foi o poço, a queda livre,
E nós, enfeitiçados pelo sol a pino,
Já não percebíamos mais a ironia detrás,
E aceitamos o encontro
Como se fosse a única saída.

Em seguida veio a trama de nossos jovens fios,
O emaranhamento de todas as essências,
E logo já não era possível dizer
Onde tu começavas
E onde terminava o eu.

Naturalmente, no clímax dessa história,
Há de caber um certo drama.
O outono acabaria em um inverno seco,
E mesmo em meio a tanto frio
Tu vistes que comigo poderia se queimar.

Depois, em tons de uma falsa sinceridade,
Entramos em uma guerra sem vencedores,
Um refinamento agressivo de nossas vontades:
Tu defendias a emancipação de tua vida
E eu jamais lhe entregaria a chave.

E passaram-se os anos, como costuma ser,
Passou o inverno, a tempestade, a fúria,
E no campo de batalha floresceu 
A certeza de que sem ti
Nada em mim teria acontecido.

É por isso que venho rogar pragas,
Pra que tu entendas que sinto asco
Não de ti, mas de mim mesmo,
Por ser eu quem devo ser culpado
E tu quem deve ser exaltada.

Então faça, faça agora tua denúncia,
Vai lá gritar ao vento do vilão que sou,
Quem mais poderia te ouvir
Senão eu, teu predador,
Resoluto em não te abandonar, minha presa.