sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Outro Eu

Quantos desertos ainda devo conhecer
Antes que o frio da noite me cale
E o sol me sussurre em resposta:
Agora que te calas, lhe ouço.

Quantas ladeiras ainda devo subir
Pra encontrar horizonte azul e azul e azul
Que renova e perpetua
A despeito de teus olhos tristes na janela.

Quantos caminhos ainda devo trilhar
Até encontrar qualquer caminho
Que me sirva, sem servir aos propósitos
Do tédio e angústia, tiranos das rédeas.

Quantas vezes eu, e eu somente, 
Um ser e um sonho, a que se ergue os braços
Quantas vezes devo repousar quem sou aos traços
E ser um outro eu, sempre um outro eu.

domingo, 28 de setembro de 2025

Calvário de Shiva

Devo minha vida à poesia.
A alma é dos Deuses, que estendem a mão em cobrança.
O pagamento, obra tão simples, reparte-se entre meus iguais.
Devo
E pretendo pagar o valor integral,
Em franco apreço à palavra
Ou juventude desvairada, 
Que me fez a negligência.

Devo e isso desfaz-me.
Ao contraste, esta dívida velha
Renova-se em mim,
Cresce em minhas entranhas 
A urgência
E já não posso continuar.

Devo encerrar este capítulo.
Pontuadas as causas, 
Detalhadas as contas,
Agora me abro às demandas
De Caronte.

Devo seccionar-me.
Em punhos a lâmina fria,
Passageira e condutora 
Do milagre reverso,
Que já não deseja estancar qualquer 
Sangria.
Devo aceitar toda vazão.

Devo alçar voos mais longos,
Sem prever os resultados.
O concreto me aguarda,
A despeito da certeza
De todas as quedas.
Devo aceitar que o impossível 
Está sempre do outro lado
Da janela.

Devo amordaçar-me.
Estrangular o cínico lamento,
Cessar qualquer vestígio
De palpitação desesperada,
Até restar o nada,
Profusão lírica de todo vazio.
Devo suprimir o pulso
Da angústia.

Devo intoxicar-me.
Tragar o ácido,
Amar os venenos que me corroem.
Então encerro a dúvida,
Pois o futuro cabe a quem ainda não veio.
Devo ingerir esta cicuta,
Assassina de temores.

Devo buscar o fundo.
Deitar-me seguro em leito de rio,
Fundir-me à naturalidade das coisas,
E, de corrente em corrente,
A rotina transforma o hábito,
E a vida floresce às margens.
Devo afogar as mágoas.

Devo despedaçar-me.
Moer, triturar, misturar,
E eu, alimento de vermes,
Conhecerei as raízes,
Só assim me encontro
Frente ao palácio da origem
E questiono o verbo
Sobre o começo.

Mas o caminho das coisas permanece inalterado,
E ao contraste, esta dívida velha
Renovando-se em mim, já em outros planos,
Paga-se em carne e sangue.
Devo matar o que sou 
Para viver o novo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Predador e Presa

No começo fez-se o laço de armadilha simples
Pra quando teus olhos cruzassem os meus.
E assim, tu, presa de arcanjo torto,
Vistes dois desastres se anunciarem:
O desgosto e o delírio.

No segundo dia foi o poço, a queda livre,
E nós, enfeitiçados pelo sol a pino,
Já não percebíamos mais a ironia detrás,
E aceitamos o encontro
Como se fosse a única saída.

Em seguida veio a trama de nossos jovens fios,
O emaranhamento de todas as essências,
E logo já não era possível dizer
Onde tu começavas
E onde terminava o eu.

Naturalmente, no clímax dessa história,
Há de caber um certo drama.
O outono acabaria em um inverno seco,
E mesmo em meio a tanto frio
Tu vistes que comigo poderia se queimar.

Depois, em tons de uma falsa sinceridade,
Entramos em uma guerra sem vencedores,
Um refinamento agressivo de nossas vontades:
Tu defendias a emancipação de tua vida
E eu jamais lhe entregaria a chave.

E passaram-se os anos, como costuma ser,
Passou o inverno, a tempestade, a fúria,
E no campo de batalha floresceu 
A certeza de que sem ti
Nada em mim teria acontecido.

É por isso que venho rogar pragas,
Pra que tu entendas que sinto asco
Não de ti, mas de mim mesmo,
Por ser eu quem devo ser culpado
E tu quem deve ser exaltada.

Então faça, faça agora tua denúncia,
Vai lá gritar ao vento do vilão que sou,
Quem mais poderia te ouvir
Senão eu, teu predador,
Resoluto em não te abandonar, minha presa.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Resgate

O resgate não veio
E tu, ao relento desfez-se,
Sem contentamento vê-se
E choras ao vento que passa
Por horas e horas a fio.

Grossas camadas sobre a pele,
As frustrações te endurecem,
As tentações te apetecem, 
E as obsessões todas somadas 
Velam por tua desesperança.

Não resta-lhe muito,
Tens teus meios e limites,
Tens receios e palpites,
E os devaneios pobres
Que nutres em hipóteses vãs.

Quisera erguer-se belo
Em um pedestal edificado,
Ser tu cristal bem lapidado,
E transitar livre entre os planos
Que ainda não projetara. 

O silêncio coroa a distância
Entre tua pessoa e a realidade
E a vida ressoa em maldade
Quando tudo que ouves
Diz nada de ti.

Mas o resgate nunca veio
E tu percebe-se só no boulevard,
Entre seu dó e a força pra mudar,
Em um paletó que não lhe cabe,
Afinal, tua dor expande-se além de ti.

E, já bem tarde, vês que o tempo passa
E tudo tem passado em tua frente,
Tudo tem passado e tem presente,
Mas és tu quem mostrará ao mundo
A novidade que ainda serás.

O futuro reserva a glória e o esquecimento,
Venenos letais que dispõe-se em doses idênticas,
Aguardando apenas teu movimento
De excesso ou ausência,
No mais arriscado dos jogos:

A vida





quinta-feira, 17 de julho de 2025

Vida Vã

Venho corrigir um erro antigo
E impor limites à tua descompostura.
Chega a noite e tu rende-se ao perigo
À selvagem e inconstante forma pura.

Tu crês que sempre podes mais,
Mesmo que tudo em ti lhe peça menos.
Sei que amas todos os venenos
E já nem pensas que os danos são reais.

Mas afirmo, tudo em ti decai,
Enquanto, louco, tu festejas outro dia
E morre um pouco ao levantar-se de manhã.
Essas feridas mostram o corpo que lhe trai
E só lamentos hoje soam de quem ria.
Até quando vais viver a vida vã?